Mirna da Pamplona
Num sábado de manhã, assim que acordei, preparei um café. O porquê de eu falar do café? Não faço ideia. Na verdade, há tempos eu já não faço ideia do que estou fazendo da minha vida. Acontece que tudo naquele dia foi amargo, do início ao fim. Vai ver é por isso.
Despejei na garrafa, enfiei na mochila, coloquei uma camiseta qualquer que estava pendurada no varal, enfiei meucaderno na mochila, tranquei a porta... Não, naquele dia eu não havia trancado. Há dias eu não tranco a porta doapartamento.
O objetivo naquela manhã fria de abril era apenas um só, encontrar Mirna no final da Pamplona com a Estados Unidos.Ela prometeu me contar sobre sua vida. Disse que tinha “história boa”.
Desci a rua até sua barraca. Lá ela estava, embaixo da árvore, em frente ao casarão. A recepção não foi das melhores.Primeiro, enxotou seu namorado, depois puxou um papelão e apontou para que eu me sentasse. Tirei a garrafa de café, ocaderno com a caneta e começamos. Não teve nem bom-dia-tudo-bem-blá-blá-blá.
― Começa, cara pálida.
― Há quanto tempo você mora nas ruas, Mirna?
― Há quanto tempo você mora embaixo de um teto?
― Desde que nasci.
― Pois é. Eu, desde que nasci também, só que o contrário. A rua é minha casa, se é isso que você quer saber. Não me lembro de ter morado em outro lugar que não tenha sido a rua.
― Sempre em São Paulo?
― Nasci em Osasco, mas logo minha mãe carregou a gente pra cá.
― Onde está sua mãe?
― Cê acha que gente como a gente vive até quando?
― Ela morreu?
― Ué?
― Quanto tempo?
― Rapaz, eu não sei nem minha idade.
Tomei um gole de café. Fiquei sem jeito de oferecer. Ela também não pareceu se importar. Depois disso houve umsilêncio meio constrangedor. Ouvíamos apenas os carros que passavam.
― Até agora você só fez pergunta chata. Puta que pariu, nem parece que tem estudo.
― Mas é que eu preciso saber um pouco da sua vida antes de você me contar aquela história boa.
― Ah! Cê quer é a história boa?
― Você disse que tinha uma história boa pra me contar, por isso eu tô aqui.
― Eu disse, é?
― Disse.
Eu já imaginava que isso poderia acontecer. Não apostava muito num furo. Quando ela me abordou a primeira vez, pediuum isqueiro, depois pediu dinheiro, puxou papo, conversa fluiu e acabei soltando que era repórter. Daí veio a promessa deuma história boa. Me senti no início de carreira, mas é como eu disse, eu não ando fazendo muito ideia do que eu estoufazendo da minha vida.
― Olha, Mirna, se não tem história, tudo bem. Eu vou embora. – Eu disse meio puto, já me levantando.
― Peraí, ô bacanudo. Tem que ser do seu jeito, é? Por que é que nessas entrevistas aí vocês vêm com sorrisinho malandro, lugar bacana, gente bonita... Agora quando é que nem eu, nem a porra do café cê me ofereceu?
― É que eu vim atrás da sua história.
― Veio o quê?
― Vim querer saber a tal história boa que você tinha pra me contar.
― O que cê precisa?
― Você tá achando que eu sou idiota?
― Só me diz. Mais uma vez. Cê quer...?
Eu não estava entendendo onde ela queria chegar. De tão irritado, ao me levantar, derrubei o café sobre o caderno. Todasas minhas últimas anotações estavam nele. Ou ela me daria uma boa história, ou eu não teria matéria nenhuma paraentregar amanhã.
― Me conta a porra da sua história, caralho!
― Olha só! Falando assim parece até que tá mendigando. Virou o jogo, bonitão. Essa história é melhor do que a peça que eu ia te pregar.
Ela se levantou, pisou no meu caderno e foi em direção ao namorado. A droga daquele café amargou até as páginas domeio do meu caderno.
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