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Mostrando postagens de maio, 2020

Hora Certa

Era meia-noite. Ela estava perdida em plena Avenida Anhanguera. Sozinha. A bateria do seu celular estava acabando. Não se importava. Na verdade, sabia apenas de uma coisa: aquela era a hora. Veio assim, do nada, o desejo de acabar com tudo. Tirou o celular do bolso. Vinte por cento de bateria. Ligou para ele.   ― Edu. ― Clarice? ― Onde você tá? ― Tô em casa. O que foi? ― Eu tô perdida, Edu. ― Como assim? Onde você tá? ― Tô na rua. ― Quem tá aí com você? ― Eu. ― Como assim? Você tá sozinha na rua uma hora dessas? ― Minha bateria tá acabando. ― Pelo amor de deus. Onde você tá? ― Na Anhanguera. ― Você tá bem? ― A gente precisa conversar. ― Pelo amor de deus! Vai pra casa. ― Eu quero conversar. Tudo bem? ― Tudo bem, mas vai pra casa, ok? Não fica na rua. Você viu que horas são? ― Não importa. ― É claro que importa! Você está em plena Avenida Anhanguera, uma hora dessas. Tá tudo bem? ― Tá. Tá tudo bem. (silêncio) ― Clarice? ― Oi. ― Volta pra casa. ― Edu, na verdade não tô bem. ― Eu vou ...

Rosa

22 de maio de 2020 Era como uma rosa, daquelas vermelhas bem escuras. Estava úmida e exalava um pus a cada vez que ela coçava com suas garras cheias de terra por baixo. A dor que sentia era o equivalente a uma faca sendo enfiada em sua perna a cada minuto. Seus olhos vermelhos escancaravam a falta de uma noite de sono digna. Sono? Não sabia mais o que era encostar a cabeça em alguma coisa por vontade própria. Fechava os olhos apenas quando, sem forças para continuar, desfalecia em qualquer canto daquela cidade grande para muitos e extremamente pequena para ela, já que há tempos não encontrava espaço para se sentir viva. Os poucos que notavam sua presença davam-lhe moedas ou restos de comida, mas não a resposta que queria ouvir. Sabia que quando lhe apontassem a direção até ele sairia daquela miséria. Dizia-se fraca, mas não chorava. A única vez que se lembra de ter deixado algumas poucas lágrimas desprenderem de seus olhos foi quando(...). Chorar para ela era sinônimo de fraqueza. Não ...

Tu

Lá fora, a chuva não dava trégua. Dentro de mim, na boca e no peito, o amargo de uma tequila sem rótulo tentava, com pouco sucesso, me manter de pé. Antes que eu caísse, senti tua mão fria, de tanto carregar um copo de cerveja gelada, me levando para a multidão. Naquela escuridão, só tu não precisavas dos raios de luz de uma balada decadente. Não só eu, mas todos te enxergavam no escuro. Teu olhar não tinha dono. Teus lábios não tinham dono. Tu não eras de ninguém e ninguém era teu. Tu eras a única dona de ti. Aliás, a palavra dona parecia nunca ter rodeado teu vocabulário. Tu eras simplesmente tu.   Não demorou muito para que nossos olhares e lábios se confundissem em meio àquela multidão perdida e dessincronizada. Eu não era ninguém para ti e tu não eras ninguém para mim. Nós não nos importávamos com nada. Na verdade, tu te importavas apenas com os homens de má índole, mas logo o teu olhar feroz os afastava. Que coragem. Que amor próprio pelo teu corpo. Talvez tenham sido estas c...

Insana Coincidência

Minha cabeça pode não estar tão boa, mas meus ouvidos continuam funcionando bem. Ao escutar o sininho da porta balançar, diminuí a temperatura do forno e fui até o balcão ver quem chegara. Com um batom cor de sangue nos lábios e um perfume barato de jasmim que se confundia com o aroma do bolo que saía da cozinha, se aproximou, colocou uma bolsa preta de couro desgastada no balcão e sentou-se no banco. Em silêncio, olhava para o nada. Parecia hipnotizada. Angustiado, desejei-lhe bom dia. Ela, ainda com o olhar perdido, começou a falar.   – Por onde eu passava, todos me olhavam. Vários homens queriam me namorar. As mulheres tentavam se vestir como eu. Eu era a beleza em seu estado humano. Sim, eu garanto. Olha esta foto minha – disse tirando um pedaço de papel desgastado de sua bolsa – Não vê? Eu era perfeita! Essa sou eu logo depois de completar meus vinte e cinco anos. Foi um dia muito especial. Sabe, eu tenho a sensação de que as pessoas mais bonitas são as que mais sofrem com as ...